sábado, 15 de julho de 2017

O que sobrará de São Paulo?

Foto: Levante Popular da Juventude
Por Tatiana Carlotti, no site Carta Maior:

Parques, estádios, mercadões, praças, cemitérios e vários outros aparelhos públicos da cidade de São Paulo. O cardápio do Plano Municipal de Desestatização (PMD) oferecido por João Doria Jr. à iniciativa privada é um banquete.

Reduzido a cinco páginas (acesse aqui), o projeto que disciplina como se dará a desestatização da capital paulista não especifica os equipamentos que serão desestatizados, a receita disso para os cofres públicos, as contrapartidas da iniciativa privada, sequer o tempo de duração das concessões públicas foi indicado.

Questionado pelo SP TV sobre valores, o prefeito foi lacunar: “R$ 5 bilhões a R$ 7 bilhões”. Sobre o tempo de concessões, “entre dez e 20 anos” mas depende... Sem maiores detalhes, Doria repete o mantra: 100% dos recursos obtidos com as desestatizações serão investidos na área social.

O incrível é que mesmo às cegas, 36 vereadores entre os 55 que compõem a Câmara Municipal de São Paulo aprovaram o PMD durante a primeira votação da proposta no último dia 3 de julho. Na ausência de mídia interessada a fomentar um debate à altura do impacto dessas desestatizações na vida de milhares de paulistanos, a discussão está limitada a seis audiências públicas, programadas para a última semana deste mês, na Câmara Municipal.

O objetivo do governo é aprovar o PMD em agosto. E dada a quantidade ínfima de vereadores da oposição na Casa Legislativa – apenas 11, entre PSOL e PT – tudo indica que serão desestatizados: o sistema de bilhetagem eletrônica; mercados e sacolões municipais; parques, praças e planetários; remoção e pátios de estacionamento de veículos; sistema de compartilhamento de bicicletas e mobiliário urbano municipal; e alienados (vendidos) imóveis.

Também serão apresentados projetos relativos às concessões do Estádio do Pacaembu (já aprovada em primeira votação) e a venda de imóveis, do autódromo de Interlagos e do Anhembi.

Muito marketing e pouca informação

Com muito marketing e pouca informação para a população – e para os próprios vereadores – Doria se prepara para dar início ao maior programa de privatização da história de São Paulo, conforme destaca o vídeo apresentado em fevereiro pelo prefeito a investidores estrangeiros, durante sua viagem a Dubai.

Uma peça publicitária cujo produto é São Paulo. Está em inglês, mas note como os aparelhos municipais são ofertados [aqui].

Desde março, o plano de desestatização ganhou ênfase no discurso do prefeito, quando foram divulgados os 55 pontos que entrarão no cardápio. Isso envolve serviços municipais, gestão municipal, projetos urbanísticos (claro, o Projeto Nova Luz está lá), ativos municipais e infraestrutura urbana (confira os 55 pontos). Alguns deles, conforme revela reportagem do Estadão, foram citados na lista, apesar de já estarem nas mãos da iniciativa privada.

Sem pudores em usar termos como privatização e desestatização, Doria justifica sua “política pública diferenciada” de duas formas: culpa o PT e a gestão de Haddad, afirmando ter herdado um “rombo” nas contas públicas; e condiciona sua capacidade de investir na área social à aprovação do PMD.

Nesta semana, os vereadores da bancada do PT na Câmara Municipal divulgaram um levantamento questionando o “rombo” mencionado pelo prefeito. O resultado desse estudo foi apresentado pelo vereador Antonio Donato, líder da bancada petista, em um vídeo (confira aqui) publicado nas redes sociais.

Donato explica que do orçamento realizado de 2016, na ordem de R$ 47,2 bilhões, restaram R$ 5,4 bilhões no caixa da prefeitura em janeiro. Seis meses depois, o montante chegou a R$ 12 bilhões em caixa. Segundo o vereador, o “rombo” mencionado pelo prefeito é resultado do congelamento de recursos promovido pela sua administração.

Um congelamento excessivo na ordem de R$ 8 bilhões. “Há uma política de engordar o caixa da prefeitura, mas a prefeitura não é banco”, ironiza, ao destacar que neste 2017, a estimativa de arrecadação da prefeitura chega a R$ 49,7 bilhões. O valor é 4,68% superior ao orçamento de 2016, afirma o vereador.

Pressa e falta de informações
Em entrevista ao SP-TV, Donato também chamou a atenção para a ilegalidade na forma como o projeto foi aprovado pelos vereadores de São Paulo, lembrando que a lei federal determina a definição de prazos, política tarifária, usuários das concessões públicas. A imprecisão de informações e a pressa do prefeito também foram denunciadas por vários parlamentares.

Em junho, quando da votação da concessão do estádio do Pacaembu, também aprovada em primeira votação, a vereadora Sâmia Bonfim do PSOL alertou: “os projetos chegam repentinamente e a gente tem que aprovar de uma hora para outra a pedido dele [prefeito]. É isso que está acontecendo com esse de desestatização”.

Até mesmo os parlamentarem que compõem a base do governo Doria criticaram a urgência do prefeito, salientando a aprovação “rápida demais do projeto” e a ausência de “margem para o debate” sobre o impacto dessas medidas.

Abstendo-se da votação no último dia 3 julho, o tucano Mário Covas Neto provocou: “Não entendo o motivo da pressa de votar. Se o executivo explicasse o motivo dessa pressa talvez fosse mais fácil”. O vereador Police Neto (PSD), por sua vez, lamentou o fato do projeto ter chegado “sem detalhes de como as concessões serão feitas”.

Problematizando a ausência de discussão sobre o PMD junto à sociedade, Sâmia Bonfim e a vereadora tucana Patrícia Bezerra (PSDB) propuseram a realização de plebiscitos. Sâmia defendeu um plebiscito que incluísse as concessões. Patrícia propôs a consulta apenas no caso de vendas definitivas.
“Quem dá o poder autorizativo para isso é a população. Porque é ela que é a dona real do patrimônio. O poder decisório extrapola os 55 vereadores da Casa”, afirmou Patrícia que chegou a ser secretária de Direitos Humanos de Doria, pedindo demissão quando da violenta expulsão dos moradores na região da Cracolândia.

As propostas de plebiscito não foram aprovadas, obviamente. A participação da sociedade está restrita a seis audiências públicas (confira a agenda) como se elas dessa conta da complexidade e dos interesses em jogo na capital paulista.

Alertas
Na última semana, foram dados dois alertas sobre as desestatizações. Um deles publicado no Brasil de Fato relativo ao remanejamento de R$ 30 milhões para o pagamento de novos funcionários e contratação de assessorias internas e externas destinadas ao processo de desestatização. A soma inicialmente seria destinada à execução de obras na capital, a medida foi publicada no D.O. em 7 de julho, afirma a reportagem.

Outro alerta é do vereador Toninho Vespoli (PSOL) em seu site. Ele aponta que foram criados decretos de crédito suplementar visando o aumento do capital da SPTuris, a empresa oficial de turismo já listada no pacote de privatizações. Com base em dados publicados no D.O., a reportagem aponta que foram remanejados R$ 5 milhões para o órgão em 28 de junho; informa também remanejamentos de R$ 5 milhões em abril e de R$ 2,5 milhões em maio. “É de se questionar esse investimento à empresa que se queira vender”, problematiza o texto.

Apesar disso e das críticas, as desestatizações estão sendo naturalizadas nos noticiários da Rede Globo - Bom Dia São Paulo, SPTV primeira e segunda edições. Embora tenha se cobrado eficiência da prefeitura, sobretudo durante a série de reportagens sobre os seis meses de gestão Doria, e destacado durante a cobertura da votação do PMD que “ainda não se sabe como a iniciativa privada vai gerenciar tudo isso”, a discussão das Organizações Globo sobre o PMD é pífia.

Autoritarismo
Uma postura mais crítica pode ser vista na Folha de S. Paulo na última semana, quando o jornalão da família Frias atiçou a fúria do prefeito-empresário ao publicar a reportagem “Doações prometidas por Doria empacam”, sobre a diferença entre os valores anunciados por Doria e os efetivamente doados pelas empresas.

Mostrando a boa educação da elite brasileira e o destempero dos que estão habituados a serem obedecidos, o prefeito respondeu à reportagem em um vídeo postado nas redes sociais – prática bastante utilizada por ele e também por Donald Trump nos EUA – desqualificando o jornalista responsável pela reportagem. Confira o vídeo [aqui].

Em defesa do repórter e da liberdade de expressão, o Sindicato dos Jornalistas divulgou uma nota, afirmando que “a reportagem, correta e bem apurada, mostra que, de um total de R$ 626,5 milhões em doações de empresas anunciadas pela Prefeitura de São Paulo para a cidade, neste ano, apenas R$ 47,7 milhões foram de fato realizadas até o momento”.

A entidade aponta que em seu depoimento “destemperado”, Doria não contesta diretamente nenhum dado apresentado no vídeo, mas “busca simplesmente, com base no poder que emana de seu cargo, desqualificar o repórter e a reportagem.”

A reportagem da Folha, aliás, não se abstém de dar a explicação da prefeitura sobre o caso - “os valores de contribuições ainda não concretizadas são divulgados para dar ´transparência total´ ao processo”; tampouco de revelar que 36% das doações anunciadas não constam nem como proposta oficial.

Mais um episódio lamentável, entre tantos, que revela o total despreparo do empresário João Doria Jr. em lidar com os desafios do cargo que ocupa.

Caráter ideológico das privatizações
Vale destacar, também, dois artigos, divulgados em março, que muito contribuem para analisarmos o impacto da aprovação do PMD.

Em São Paulo, cidade-mercadoria à venda com muita propaganda, o jornalista e sociólogo Lalo Leal Filho aponta ser “impossível acreditar que os novos administradores privados do Pacaembu, Anhembi, Autódromo de Interlagos, dos parques, praças, sacolões, mercados e planetários, entre outros bens à venda, colocarão em risco suas margens de lucros caso seja necessário manter e aperfeiçoar a qualidade do serviço público hoje prestado nesses equipamentos municipais”.

Na mesma toada crítica, o vereador Donato e Roberto Garibe, ex-secretário de Infraestrutura Urbana e Obras da gestão Haddad, analisam em “São Paulo, uma cidade em liquidação”, o caráter ideológico do projeto privatista de Dória: “uma ideologia que de maneira simplista se opõe ao que é público e considera o setor privado o mais competente para desempenhar determinadas funções”.

Recuperando episódios do Programa de Desestatização do governo FHC, como a venda do patrimônio público abaixo do preço de mercado, eles destacam a perda de uma grande oportunidade neste momento: “ele [Doria] sequer cogita fazer da maior metrópole do hemisfério Sul um vetor de enfrentamento da agenda do emprego”.

Eleito com 53,29% dos votos, em um pleito com 38,84% de votos brancos (5,29%), nulos (11,35%) e abstenções (21,84%), apesar de todo marketing que detém, o prefeito-empresário João Doria Jr. vem se revelando a antítese do gestor moderno que tanto almeja. Basta observar sua reação tacanha, antiquada e autoritária diante de questão que lhe fuja do controle.

Seus ataques contra a população, formadores de opinião e opositores em geral apenas revelam o que os agentes do mercado e do sistema corporativo são capazes de fazer na administração pública, em defesa de seus interesses.

Apresentar uma proposta da dimensão do PMD com tantas lacunas, suprimindo a possibilidade de uma profunda e democrática discussão na sociedade, pode ser uma jogada “esperta” para o mundo corporativo. Mas é inadmissível quando consideradas a ética, a transparência e a participação social, aspectos de qualquer gestão pública que se diga efetivamente moderna.

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